A presente entrevista procura analisar as condições de vida, a experiência escolar, os métodos disciplinares utilizados no período do Estado Novo, a mobilização para a Guerra Colonial (1961–1974) e a passagem para o período da Democracia (25 de abril de 1974) de um “deficiente das Forças Armadas” que combateu na Guiné-Bissau. Através de palavras, muitas vezes carregadas de profunda emoção e revolta, iremos conhecer a estória de vida de um homem, de nome Duarte Magalhães, que tendo feito parte de uma força agressora, se tornou, também ele próprio, uma vítima! Ouçamos com especial atenção:
Miguel: - Antes de mais, muito obrigado pela disponibilidade que demonstrou em partilhar a sua estória de vida comigo e com os meus colegas. Sinto-me muito honrado.
Entrevistado: - Ora essa Miguel. Vai ser um prazer! É importante, muito importante, conhecer a História, para que nos sirva de guia para o futuro, para que os erros cometidos lá atrás, não se repitam.
Miguel: - Qual o seu nome?
Entrevistado: - Duarte Magalhães.
Miguel: - Qual é a sua data de nascimento?
Entrevistado: - Nasci a 17/09/1942, no distrito de Aveiro.
Miguel: - Qual é o seu estado civil?
Entrevistado: – Sou casado. Casei com a minha “Madrinha de Guerra*”. Temos três filhos maravilhosos e quatro netinhos. Vou contar-te uma curiosidade. Talvez fiques muito espantado... casamos à distância, sem nos conhecermos pessoalmente. Ela cá em Portugal e, eu, lá, na Guerra. Foi uma festa só com a noiva, muitos convidados, e o meu pai, com uma procuração passada em meu nome, o que confirmava a nossa união, que resiste até hoje! Uma linda estória de amor. Trocamos mais de 500 cartas ao longo dos três anos da minha mobilização.
Miguel: – O que faziam os seus pais?
Entrevistado: - Dedicavam-se à agricultura.
Miguel: - Descreva-me o local onde morava, a sua casa e o que havia em redor?
Entrevistado: - Vivia numa pequena aldeia, com os meus pais e irmãos. A nossa casa era humilde, como quase todas as outras à nossa volta, mas muito asseada. A minha mãe era uma excelente dona de casa, muito doce e meiga. Não havia luxos e comíamos o que produzíamos no quintal e do gado que criávamos. Tínhamos sempre leite das cabras, ovos das galinhas e pão que era feito pela minha mãe num forno de lenha que tínhamos. Doces só no Natal e todos feitos em casa. Lembro-me que a roupa era passada a ferro com um ferro com carvão. Muito diferente do que é hoje...
Miguel: - Agora, gostaria de saber um pouco mais em detalhe sobre o modo como as coisas funcionavam em sua casa, quando era criança. Será que é capaz de se lembrar de um dia típico, quando ainda andava na escola primária, e tentar descrever como era a sua rotina diária? Por exemplo, quem é que lhe preparava o pequeno-almoço? Como é que ia para a escola? Era longe de casa? Ia com os seus irmãos? Almoçava na escola? Como é que a professora o costumava tratar? Como era a disciplina na escola? Alguém lhe preparava o lanche? O que fazia no fim da escola? O que fazia no fim de semana? Como era a televisão na época?
Entrevistado: - O pequeno-almoço era preparado pela minha saudosa mãe. Uma caneca de leite de cabra com um bocadinho de café e pão. E era uma delícia! Na minha família ainda havia a possibilidade de levar lanche para a escola, mas muitos outros meninos não tinham essa sorte. A alimentação era muito pobre no geral, muito fraca em nutrientes. Não comíamos carne ou peixe todos os dias, na melhor das hipóteses, uma a duas vezes por semana. Não havia desperdício alimentar, como hoje se vê. Os restos das refeições eram reaproveitados para confecionar outros pratos. Quem não conseguia comprar peixe, fazia os chamados “peixinhos da horta” que é feijão verde passado por ovo e farinha e frito e que se acompanhava com arroz de tomate. Se sobrava algum pedaço de carne era utilizado no dia seguinte, por exemplo para fazer empadão. Nada se deitava nada fora! Ia a pé para a escola juntamente com os vizinhos e almoçava em casa.
A minha escola era perto de casa, mas muitos outros meninos percorriam uma grande distância a pé. Os professores na altura chamavam-se “Regentes”. Se errássemos num exercício ou estivéssemos a conversar uns com os outros, levávamos com réguas, éramos colocados de castigo, em cima da areia em joelhos e virados para a parede. Hoje, a escola é muito diferente e, ainda bem! No final da quarta classe (escolaridade obrigatória) era necessário realizar um exame. Quem passava, comprava foguetes e deitava-os para todos ficarem a saber que se tinha ficado bem. Os manuais duravam anos e não se podia escrever neles. Escrevíamos em pedras que eram os nossos cadernos. A sala de aula era fria, tinha nas paredes uma foto do Salazar e um crucifixo. Não podíamos falar de qualquer maneira e não podíamos expressar livremente as nossas opiniões.
Quando chegava a casa tinha de ajudar os meus pais com o que precisassem dentro ou fora de casa (por exemplo, ajudar a alimentar os animais que tínhamos). No fim de semana a rotina era exatamente a mesma. Levantávamos cedo e cedo deitávamos. Não existiam os meios de comunicação que hoje existem. As noites eram passadas à lareira a conversar, contávamos anedotas e falávamos sobre a vida. Era esta a nossa rotina. Não tinha ajuda nos trabalhos escolares pois os meus pais mal frequentaram a escola. Não sabiam ler, mas eram especialistas a fazer contas de cabeça.
Quando a escola terminou fui trabalhar, ainda antes dos 9 anos, como ajudante de pedreiro. Mas cedo percebi que aquele não podia ser o meu caminho. Queria mais. Não sabia bem que profissão queria, mas sabia que precisava melhorar as minhas condições de vida. Mais tarde, desempenhei muitas atividades, subi a pulso e criei a minha própria empresa.
Miguel: - Como é que os seus pais impunham a disciplina a si e aos seus irmãos?
Entrevistado: - Não havia indisciplina, éramos ensinados desde o nascimento a respeitar pai e mãe, sem questionar e sobretudo, dar valor aos mais velhos, que eram vistos como uma fonte de sabedoria e não como um fardo, como se vê, muitas vezes, na sociedade atual. Enquanto os meus avós foram vivos, viveram também connosco. Não existiam lares de idosos. Rigor, disciplina, respeito, eram as palavras de ordem em casa dos meus pais.
Miguel: Como recebeu a notícia de que tinha sido mobilizado para a Guerra e a guia de marcha? Tente descrever esse dia. Como se sentiu? O que pensou? O que lhe disseram os seus pais? O que decidiu fazer?
Entrevistado: - Procurei apagar esse dia da minha memória. Recordo a minha mãe lavada em lágrimas a pedir a Deus que voltasse são e salvo. Senti que fui encarregue de uma missão e que tinha o dever de a cumprir. Aliás, não podia não o fazer.
Mas, se anulei da memória o dia em que soube da minha mobilização, nunca mais me esqueci dos atos de violência que pratiquei contra civis. O efeito desses atos acabou por emergir apenas em 2004 quando visualizei as imagens da Guerra do Iraque. Na altura da mobilização, não senti problemas em cometer esses atos hediondos, em fazer o que fiz. Acreditava que era a minha obrigação, a minha missão. Hoje, isso afeta-me muito. Sofro de stress pós-traumático. Acordo sobressaltado a imaginar-me no meio da Guerra. Choro horas a fio e eu que era duro e implacável. A guerra é terrível, porque me transformou em “bicho”. Foi matar ou morrer. Nunca me esquecerei de que participei numa operação em que a missão era queimar uma aldeia inteira e matar toda a população. Os alferes eram jovens com 23 e 24 anos, os capitães tinham 25 e nós tínhamos 20. Muitos de nós cortamos as línguas e as orelhas daquele povo. Só tenho a pedir PERDÃO!!! Não consigo estar em paz com a minha consciência...
Talvez a vida se tenha encarregado do meu castigo... A certa altura acordei e apercebi-me que estava sem uma perna, fiquei um ou dois segundos sob o efeito do sopro de uma explosão, fiquei em estado de choque. A memória arrasta consigo a vitimização e a culpabilização. Depois da explosão fui levado para o hospital na colónia e percebi a exaustão do pessoal médico e de enfermagem. A guerra era muito dura! Ao chegar ao bloco operatório vi inúmeros indivíduos embrulhados em cobertores a gritar de dor, à espera de vaga. Deitaram-me numa pedra e por baixo dela, vi o que nunca pensei, alguidares de carne humana...cortada! Fiquei traumatizado, ainda mais...E a todos os momentos, mais helicópteros a transportar gente ferida, gravemente. Pessoas sem braços, pernas, cegos....
Lembro-me também que as urnas com os soldados mortos eram sempre retiradas dos barcos à noite e transportadas discretamente para a as suas terras. Nós, deficientes de guerra, tínhamos de sair à rua discretamente para não provocar alarme social. Não podíamos sair em grupo, chamaria demasiado a atenção.
Miguel: - O 25 de abril de 1974 o que significou para si?
Entrevistado: - Foi uma espécie de primavera após um longo inverno.
Miguel: - Quais foram as grandes mudanças que sentiu após a revolução?
Entrevistado: - Paz, liberdade e amor fraternal entre todos os povos falantes de português. Somos irmãos. Sempre seremos. Que nos consigam perdoar. Só o perdão nos pode apaziguar e devolver a dignidade. Espero e desejo esse perdão. Quero voltar a sentir-me um ser humano!
Miguel: - Muito obrigado pelo seu testemunho.
Entrevistado: - É importante que a memória não se apague. O que aconteceu não pode voltar a repetir-se! Obrigado.